quinta-feira, 25 de junho de 2009

'Cota para pobre não resolve problema'


Historiador George Reid Andrews defende ações afirmativas e concorda com decisões judiciais, com ressalvas
Felipe Werneck -


RIO DE JANEIRO - A recente liminar do Tribunal de Justiça do Rio que suspendeu o sistema de cotas no Estado, considerado inconstitucional, segue decisão semelhante de 1978 da Corte Suprema Federal dos EUA, diz o historiador George Reid Andrews, professor do Departamento de História da Universidade de Pittsburgh e autor de livros sobre o Brasil. Ele afirma concordar com as decisões judiciais e avalia que uma eventual cota para pobres, e não para negros, “teria os mesmos problemas”. Reid é a favor de ações afirmativas, mas não necessariamente na forma de cotas.

“Concordo que as cotas podem correr o risco de institucionalizar grupos raciais que até agora não se cristalizaram. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade brasileira não pode deixar de responder às marcadas e seculares desigualdades raciais que a afligem.” O brasilianista sugere uma combinação de medidas e afirma que o país latino-americano mais bem sucedido no combate a essas desigualdades é Cuba.
Reid participou na semana passada do Congresso Internacional da Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA, na sigla em inglês), realizado na PUC do Rio. Para ele, apesar do número relativamente pequeno de ativistas, o movimento negro foi responsável por “conquistas extraordinárias” ocorridas no País nos últimos anos. “Questionaram a imagem dessa sociedade como uma democracia racial e convenceram os presidentes recentes (FHC e Lula) a reconhecerem a realidade das desigualdades e discriminações raciais e a proporem políticas para combater esses problemas. Assim, provocaram os debates atuais sobre ações afirmativas, algo absolutamente impensável no Brasil dos anos 80.”

George Reid Andrews é Ph.D. em História pela Universidade de Wisconsin-Madison. Tem dois livros publicados no Brasil: Negros e Brancos em São Paulo,1888-1988 (Edusc,1998) e América Afro-Latina,1800-2000 (EdUFSCar, 2007).

Na entrevista abaixo, realizada por email, ele conta que vem ocorrendo nos EUA “notável” reavaliação e ressurgimento acadêmico de Gilberto Freyre (1900-1987). Reid é autor dos livros “Negros e Brancos em São Paulo, 1888-1988” (Edusc) e “América Afro-Latina, 1800-2000”, sua publicação mais recente, editada no País pela EdUFSCar.

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio considerou inconstitucional a lei de cotas adotada em universidades do Estado. No Brasil ainda se discute uma lei federal sobre o tema, e uma das propostas é a criação de uma reserva para pobres. Como o sr. avalia?

Como uma opção bem interessante. Uma das conclusões de Afro-América Latina é que o país latino-americano mais bem-sucedido no combate às desigualdades raciais é Cuba. O censo cubano de 1981 mostrou a ilha como a sociedade mais racialmente equitativa - nos índices de expectativa de vida, educação, emprego, estado civil, etc. - das Américas. E essa igualdade se alcançou inteiramente por meio das políticas universais dirigidas às classes pobres cubanas. Mas vejo também dois pontos contra uma política de cotas para os pobres. Primeiro, sou muito a favor das ações afirmativas, mas não necessariamente na forma de cotas. Concordo com as decisões dos tribunais nos EUA e agora no Brasil, que consideraram as cotas inconstitucionais. E uma cota para pobres teria os mesmos problemas de cotas para qualquer outro grupo. Segundo, uma cota para pobres não vai resolver os problemas enormes dos afro-brasileiros que estão na luta para entrar, ou avançar, na classe média. Para mim, o estudo mais importante do problema racial no Brasil nos últimos anos é ‘Racismo à brasileira’, de Edward Telles. Ele mostra que, no nível das classes pobres e trabalhadoras - quer dizer, para a maioria da sociedade brasileira -, a vida cotidiana realmente tem características da democracia racial. As desigualdades de salário, educação, emprego etc. existem mas não são muito grandes. Mas o quadro racial muda ao entrar nas classes médias e altas, onde as desigualdades e discriminações raciais são muito marcadas. Nesse nível da sociedade, a que todos aspiram, cotas para pobres não vão resolver absolutamente nada.

De que forma esse debate ocorreu nos EUA?

Os EUA adotaram uma política oficial de ações afirmativas em 1965, por ordem do presidente Johnson. Essa política foi estendida por Nixon em 1969, cujo Departamento de Trabalho mandou que as empresas privadas contratadas pelo governo empregassem uma certa porcentagem de negros. Nos anos 70, esse sistema de cotas foi adotado por muitas agências governamentais, empresas privadas e universidades. Em 1978, a Corte Suprema Federal considerou inconstitucional o sistema de cotas raciais na seleção de alunos para universidades. O julgamento acabou com esse sistema. Mas a Corte também deixou aberta a possibilidade de se levar em conta a raça como um critério, entre outros, na seleção de alunos, empregados, etc. Em 2003, a Corte revisitou essa questão e mais uma vez determinou o uso da raça como um dos critérios na seleção de candidatos, entre outros - por exemplo, o desempenho escolar.

Críticos das cotas para negros afirmam que elas teriam o efeito colateral de “fomentar o ódio racial”. Conhecido pela miscigenação, o Brasil correria o risco, eles argumentam, de tornar-se repartido em etnias. Como o sr. vê isso?

Primeiro, vale a pena notar que, conforme dados oficiais produzidos e difundidos pelo IBGE, o Brasil efetivamente já é uma sociedade bicolor. Numa longa série de estudos e informes realizados nos últimos 30 anos, o IBGE tem mostrado que os pardos e pretos experimentam níveis de desigualdade e discriminações bastante parecidos. Essa conclusão levou o IBGE, em alguns daqueles estudos, à prática de juntar os dois grupos numa só categoria de ‘negros’. Assim, criar um sistema de cotas dividido em brancos e negros seria reconhecer a realidade social e racial do país. Concordo que as cotas podem correr o risco de institucionalizar grupos raciais que até agora não se cristalizaram de forma fixa e coerente. Mas, ao mesmo tempo, a sociedade brasileira não pode deixar de responder às marcadas e seculares desigualdades raciais que a afligem. Para combater essas desigualdades será preciso uma combinação de medidas universalistas e outras especificamente raciais.

O sr. já comparou estatísticas sobre desigualdade racial no Brasil e nos EUA e chegou à conclusão de que até os anos 50 o Brasil teria sido uma sociedade mais equitativa. Mas entre 1960 e 1990 essas desigualdades diminuíram nos EUA, enquanto no Brasil permaneceram estáveis ou em alguns aspectos até cresceram. Qual foi o impacto das políticas de ações afirmativas?

Não foi possível nesse artigo medir o peso específico dos vários fatores que contribuíram às mudanças acontecidas entre 1960 e 1990. Mas a minha hipótese seria que os impactos das políticas de ação afirmativa foram muito significativos, especialmente no contexto de uma sociedade saindo da experiência histórica da segregação racial. Uma das conclusões foi que políticas parecidas - quer dizer, de ações afirmativas - poderiam ter impactos igualmente significativos no Brasil, no sentido de reduzir as desigualdades raciais. Outra conclusão foi que o crescimento econômico naquele período (1950-90) teve impactos levemente igualitários nos EUA - quer dizer, reduzindo um pouco as desigualdades de classe -, enquanto no Brasil aconteceu o contrário. Os índices de concentração de renda cresceram no Brasil naqueles anos, o que provavelmente agravou também as desigualdades raciais. Assim, uma política de redistribuição de renda poderia ter impactos bastante positivos no sentido de também reduzir desigualdades de raça. Esse artigo me convenceu da necessidade, para reduzir as desigualdades raciais, não só de políticas de ação afirmativa mas de políticas universais também, tanto nos EUA quanto no Brasil. Ao mesmo tempo, cada país tem suas especificidades. O ideal seria que os debates públicos incluíssem e considerassem experiências relevantes em muitos países, na procura constante daquelas bem-sucedidas das quais poderiam tirar proveito.

Até os anos 60, houve nos EUA de certa forma uma aceitação do conceito - ou mito - da democracia racial no Brasil. Hoje, há quem afirme que essas condições em alguns casos seriam apresentadas em sentido oposto, como piores do que realmente são. O sr. concorda com essa avaliação?

Eu diria, primeiro, que nenhum país (ou pessoa) gosta de ser criticado por sociedades ou pessoas de fora, muito menos no caso de essas críticas serem merecidas. No caso dos EUA, claro que não gostamos de ser chamados de imperialistas ou racistas, apesar de todos sabermos que o nosso país tem uma história, e até certo ponto um presente (esperamos que não um futuro), que podem ser caracterizados, e com justiça, dessa maneira. No caso das críticas às relações raciais brasileiras, tendo gozado da fama e do prestígio de ser uma democracia racial, ninguém no Brasil pode gostar de ser visto como uma sociedade e um país racista. Mas muito pouco se diz neste sentido nos EUA que não se ouve também no Brasil. As críticas ao modelo racial brasileiro feitas nos EUA são em grande parte resumos ou repetições de observações realizadas por estudiosos brasileiros e dos estudos e informes importantíssimos do IBGE. Os pesquisadores norte-americanos também foram, e são, influenciados por outro grupo bastante ativo na sociedade brasileira, os ativistas de movimentos negros. Não cabe dúvida de que esses ativistas têm armado uma visão muito crítica do Brasil na esfera racial. Mas se essa visão corresponde em muitos pontos com os estudos acadêmicos, e vem de pessoas altamente qualificadas para comentar esse tema, tanto por suas experiências de vida quanto por suas capacidades de análise, não temos a obrigação de prestar atenção?

Gilberto Freyre ainda é muito estudado nos EUA?

Muito. Na matéria de pós-graduação que dou sobre o Brasil, a primeira sessão é completamente dedicada a ‘Casa Grande e Senzala’. E é notável como os outros livros que lemos no curso, escritos metade por autores brasileiros e metade por estrangeiros, voltam constantemente, e em muitos casos sem reconhecer explicitamente, aos temas e às preocupações freyrianas. Nos últimos anos Freyre tem experimentado uma reavaliação e ressurgimento acadêmico notável, tanto nos EUA quanto no Brasil. Não é muito frequente que um autor continue tão relevante e citado quase um século depois de sua atuação; no caso de Freyre, acho que um motivo para essa relevância é justamente a sua experiência de ter saído do país para vê-lo de fora. Seus estudos e experiências nos EUA levaram-no a ver e a questionar o Brasil sob outra perspectiva, dando à sua obra esse caráter de urgência e ansiedade - para entender, explicar, e defender o Brasil - que a faz tão envolvente até hoje.

Poderia falar um pouco sobre o tema de sua palestra na LASA (a raça nos censos latino-americanos)?

O Brasil é um dos poucos países da região que juntaram dados raciais desde o século XIX. Cuba é outro. A grande maioria deixou de contar a raça, o que torna muito difícil averiguar o estado das desigualdades raciais na região. Nos últimos anos, as Nações Unidas têm pedido aos países latino-americanos para restaurarem informações raciais nos seus censos, e alguns países (Costa Rica, Colômbia e Uruguai) responderam nesse sentido. Vou apresentar alguns dados dos censos e PNAD’s brasileiros e uruguaios recentes para comparar o estado das desigualdades. As conclusões me surpreenderam. O Uruguai historicamente foi uma sociedade muito mais equitativa que o Brasil, no sentido tanto de raça quanto de classe; mas nos últimos dez anos as políticas dos governos Cardoso e Lula têm reduzido sensivelmente algumas desigualdades de classe e, pelos efeitos comentados antes, de raça também. Para citar um só exemplo, em 2006 a desigualdade racial na inscrição escolar superior foi menor no Brasil do que no Uruguai. Este resultado inesperado, a que se deve? Às ações afirmativas - que se discutem no Uruguai mas ainda não se adotaram? Ao Bolsa Família e a outros programas sociais dos últimos anos? Aos efeitos combinados de políticas raciais e universalistas? Por agora não sabemos, mas sem os dados fornecidos pelos censos nem poderíamos ter formulado a pergunta; daí a importância dessas fontes estatísticas e a necessidade de produzi-las nos outros países.

terça-feira, 23 de junho de 2009

"Então é verdade, no Brasil é duro ser negro?"


A mais importante atriz de Moçambique diz ter sofrido discriminação racial em São Paulo
Eliane Brum


Fazia tempo que eu não sentia tanta vergonha. Terminava a entrevista com a bela Lucrécia Paco, a maior atriz moçambicana, no início da tarde desta sexta-feira, 19/6, quando fiz aquela pergunta clássica, que sempre parece obrigatória quando entrevistamos algum negro no Brasil ou fora dele. "Você já sofreu discriminação por ser negra?". Eu imaginava que sim. Afinal, Lucrécia nasceu antes da independência de Moçambique e viaja com suas peças teatrais pelo mundo inteiro. Eu só não imaginava a resposta: "Sim. Ontem".
Lucrécia falou com ênfase. E com dor. "Aqui?", eu perguntei, num tom mais alto que o habitual. "Sim, no Shopping Paulista, quando estava na fila da casa de câmbio trocando meus últimos dólares", contou. "Como assim?", perguntei, sentindo meu rosto ficar vermelho. Ela estava na fila da casa de câmbio, quando a mulher da frente, branca, loira, se virou para ela: "Ai, minha bolsa", apertando a bolsa contra o corpo. Lucrécia levou um susto. Ela estava longe, pensando na timbila, um instrumento tradicional moçambicano, semelhante a um xilofone, que a acompanha na peça que estreará nesta sexta-feira e ainda não havia chegado a São Paulo. Imaginou que havia encostado, sem querer, na bolsa da mulher. "Desculpa, eu nem percebi", disse.
A mulher tornou-se ainda mais agressiva. "Ah, agora diz que tocou sem querer?", ironizou. "Pois eu vou chamar os seguranças, vou chamar a polícia de imigração." Lucrécia conta que se sentiu muito humilhada, que parecia que a estavam despindo diante de todos. Mas reagiu. "Pois a senhora saiba que eu não sou imigrante. Nem quero ser. E saiba também que os brasileiros estão chegando aos milhares para trabalhar nas obras de Moçambique e nós os recebemos de braços abertos."
A mulher continuou resmungando. Um segurança apareceu na porta. Lucrécia trocou seus dólares e foi embora. Mal, muito mal. Seus colegas moçambicanos, que a esperavam do lado de fora, disseram que era para esquecer. Nenhum deles sabia que no Brasil o racismo é crime inafiançável. Como poderiam?
Saiba mais
Sergia Galván - "O racismo hoje é mais sutil e mais forte" Cotas para quê? Agência proíbe de falar sobre cotas, diz top
Lucrécia não consegue esquecer. "Não pude dormir à noite, fiquei muito mal", diz. "Comecei a ficar paranoica, a ver sinais de discriminação no restaurante, em todo o lugar que ia. E eu não quero isso pra mim." Em seus 39 anos de vida dura, num país que foi colônia portuguesa até 1975 e, depois, devastado por 20 anos de guerra civil, Lucrécia nunca tinha passado por nada assim. "Eu nunca fui discriminada dessa maneira", diz. "Dá uma dor na gente."
Ela veio ao Brasil a convite do Itaú Cultural, que realiza até 26 de junho, em São Paulo, o Antídoto - Seminário Internacional de Ações Culturais em Zonas de Conflito. Lucrécia apresentará de hoje a domingo (19 a 22/6), sempre às 20h, a peça Mulher Asfalto. Nela, interpreta uma prostituta que, diante de seu corpo violado de todas as formas, só tem a palavra para se manter viva.
Lucrécia e o autor do texto, Alain-Kamal Martial, estavam em Madagáscar, em 2005, quando assistiram, impotentes, uma prostituta ser brutalmente espancada por um policial nas ruas da capital, Antananarivo. A mulher caía no chão e se levantava. Caía de novo e mais uma vez se levantava. Caía e se levantava sem deixar de falar. Isso se repetiu até que nem mesmo eles puderam continuar assistindo. "Era a palavra que a fazia levantar", diz Lucrécia. "Sua voz a manteve viva." Foi assim que surgiu o texto, como uma forma de romper a impotência e levar aquela voz simbólica para os palcos do mundo.
Mais tarde, em 2007, Lucrécia montou o atual espetáculo quando uma quadrilha de traficantes de meninas foi desbaratada em Moçambique. Eles sequestravam crianças e as levavam à África do Sul. Uma menina morreu depois de ser violada de todas as maneiras com uma chave de fenda. Lucrécia sentiu-se novamente confrontada. E montou o Mulher Asfalto.
Não poderia imaginar que também ela se sentiria violada e impotente, quase sem voz, diante da cliente de um shopping em um outro continente, na cidade mais rica e moderna do Brasil. Nesta manhã de sexta-feira, Lucrécia estava abatida, esquecendo palavras. Trocou o horário da entrevista, depois errou o local. Lucrécia não está bem. E vai precisar de toda a sua voz - e de todas as palavras - para encarnar sua personagem nesta noite de estréia.
"Fiquei pensando", me disse. "Será que então é verdade? Que no Brasil é difícil ser negro? Que a vida é muito dura para um preto no Brasil?" Eu fiquei muda. A vergonha arrancou a minha voz.


Revista Época 19/06/2009

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Justiça dos Estados diz que cotas são legais



Decisão de desembargadores do Rio, derrubando sistema, é exceção

CLARISSA THOMÉ, TIAGO DÉCIMO, ANGELA LACERDA, RICARDO RODRIGUES, LIEGE ALBUQUERQUE, EVANDRO FADEL, ROBERTO ALMEIDA, EDUARDO KATTAH e ELDER OGLIARI


Um levantamento em oito Estados onde universidades públicas adotam cotas mostra que, na maioria dos casos, o Judiciário tendeu a rejeitar contestações de não-cotistas e considerou o sistema constitucional. Diferentemente do Tribunal de Justiça do Rio - onde desembargadores, semana passada, deram liminar contra a reserva de vagas a pobres e afrodescendentes, mas ainda julgarão o mérito da ação -, magistrados da Bahia, Pernambuco, Alagoas, Amazonas, Minas Gerais e Paraná raramente tomaram decisões semelhantes. A exceção é o Rio Grande do Sul, onde o critério de renda tem dado vitórias a opositores da "discriminação positiva". Não há ações em São Paulo. "A situação do Rio de Janeiro é única. Em todos os outros Estados os tribunais não estão interferindo nas políticas de inclusão. Até porque aguardam o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF)", afirma o advogado Renato Ferreira, pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj).Hoje, diz, 82 universidades em 23 Estados adotam algum tipo de política inclusiva. Dessas, 35 têm o sistema de cotas.Estado com maior proporção de afrodescendentes, segundo o IBGE, com 79,1% de pretos ou pardos, a Bahia tem cotas na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e na Universidade Federal da Bahia (UFBA). "No primeiro ano, foram concedidas 30 liminares para estudantes que alegaram inconstitucionalidade das cotas, mas foram derrubadas pelo Tribunal de Justiça", diz o pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Uneb, Wilson Mattos.A Justiça reconheceu a constitucionalidade da cota social (20% para egressos de escolas públicas) implantada em 2004 pela Universidade de Pernambuco e que já foi alvo de processos. Foram cerca de dez vitórias. A Universidade Federal de Alagoas, que reserva 20% das vagas para afrodescendentes que cursaram ensino médio público, tem tido o apoio do Ministério Público Federal.A estudante Kate da Silva entrou na Justiça para requerer vaga na Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Amazonas. "Quem ficou na minha frente foi um rapaz que indevidamente usou a cota de morador do interior", diz. Ao se inscrever para o vestibular, o candidato pode se encaixar em 10 tipos de cotas. Há anualmente na Justiça ao menos 30 contestações ao sistema, que dá 60% das vagas a estudantes do ensino médio de escolas públicas e 4% a índios. Ainda incipientes nas universidades públicas em Minas Gerais, cotas ou bônus costumam gerar contestações judiciais. "Em todas, a universidade foi vencedora", diz Fernando Gonzaga Jayme, procurador-geral da UFMG. Segundo a Justiça Federal no Paraná, em 2007 foram 13 ações contra o sistema de ações afirmativas na Universidade Federal do Paraná. Das 10 às quais o Estado teve acesso, 7 foram negadas e 3, acolhidas. Em 2008, 7 tiveram pedidos negados, 3 foram deferidos, e em 2 os autores desistiram. Em 2009, 6 foram negadas e 2, aceitas.Em São Paulo, só a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) adota cotas. Não há ações judiciais.Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desde a primeira seleção feita sob o regime de cotas, em 2008, foram ajuizadas dezenas de ações. A advogada Wanda Siqueira diz ter conseguido cerca de 40 decisões favoráveis em cerca de 80 ações. Nenhuma é definitiva. Wanda, porém, não alega inconstitucionalidade."Houve desvirtuamento do espírito das cotas", diz, referindo-se à classificação, pelo sistema, de alunos de famílias de boa condição social e de bons colégios públicos.O sargento da Aeronáutica aposentado David Minuzzo entrou na UFRGS por liminar. Ficou em 27º lugar num grupo de 30 alunos, com dez vagas para cotistas, em 2008.

terça-feira, 16 de junho de 2009


Governo vai criar cotas para bolsas de pesquisa científica


13/5/2009 - Brasil - Folha de São Paulo
O governo federal irá instituir pela primeira vez cotas em bolsas de pesquisa. Num programa de iniciação científica, serão criadas 600 vagas exclusivas para alunos que ingressaram nas universidades públicas por meio de ações afirmativas, como cotas raciais (para alunos negros) e sociais (para estudantes oriundos de escola pública).As novas vagas farão parte de uma linha do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, o Pibic, que já oferece todo ano aproximadamente 20 mil bolsas no país.O lançamento acontece hoje, data que marca os 121 anos da Abolição no Brasil. Será assinado um termo de cooperação entre a Secretaria da Igualdade Racial da Presidência e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia.Assim como já ocorre nas demais linhas do Pibic, os beneficiários terão direito a R$ 300 mensais no período de um ano. O orçamento dessa linha é de R$ 2,1 milhões, sendo R$ 1,8 milhão em recursos do CNPq e o restante da Igualdade Racial. Normalmente, para obter a bolsa de iniciação científica, o candidato tem que estudar em alguma instituição credenciada no programa do CNPq.A seleção dos estudantes é feita pela própria universidade, a partir de um projeto de pesquisa. A regra também valerá para quem pleitear uma vaga por meio da cota.Projeto-pilotoA nova medida é tratada pelo governo federal como um projeto-piloto. Caso seja bem sucedida, a ideia é expandi-la em outras áreas. Na esfera federal, uma iniciativa parecida ocorre desde 2002 no Instituto Rio Branco, do Itamaraty, por meio de um programa de bolsas-prêmio para estimular o ingresso de afrodescendentes na carreira diplomática.No caso da bolsa de iniciação científica, o objetivo é estimular universitários a virarem pesquisadores e tornar mais eficiente a pós-graduação, reduzindo o período de realização de um mestrado ou doutorado. Poderão aderir à nova linha as universidades públicas que já adotam políticas de ações afirmativas."Essa bolsa é um marco na manutenção de estudantes nas universidades. O nosso dilema não é apenas com a entrada, mas também com a permanência deles. Esses alunos [que ingressam por ações afirmativas] terão a chance de se interessar pela ciência", afirma Martvs da Chagas, subsecretário de Políticas de Ações Afirmativas da Secretaria da Igualdade Racial. O CNPq não soube informar quantos estudantes do Pibic hoje são negros ou entraram na universidade por meio de ações afirmativas.Considerando todo o ensino superior do país, os números do IBGE mostram que os negros e pardos são 38% dos alunos de graduação, embora sejam metade da população, pela Pnad de 2007. No mestrado e no doutorado, que o governo quer incentivar, só um terço dos estudantes é negro.

terça-feira, 9 de junho de 2009

As cotas desmentiram as urucubacas




ELIO GASPARI


As cotas desmentiram as urucubacas


Os negros desorganizariam as universidades, como a Abolição destruiria a economia brasileira.



QUEM ACOMPANHASSE os debates na Câmara dos Deputados em 1884 poderia ouvir a leitura de uma moção de fazendeiros do Rio de Janeiro:"Ninguém no Brasil sustenta a escravidão pela escravidão, mas não há um só brasileiro que não se oponha aos perigos da desorganização do atual sistema de trabalho."Livres os negros, as cidades seriam invadidas por "turbas ignaras", "gente refratária ao trabalho e ávida de ociosidade". A produção seria destruída e a segurança das famílias estaria ameaçada.Veio a Abolição, o Apocalipse ficou para depois e o Brasil melhorou (ou será que alguém duvida?).Passados dez anos do início do debate em torno das ações afirmativas e do recurso às cotas para facilitar o acesso dos negros às universidades públicas brasileiras, felizmente é possível conferir a consistência dos argumentos apresentados contra essa iniciativa.De saída, veio a advertência de que as cotas exacerbariam a questão racial. Essa ameaça vai completar 18 anos e não se registraram casos significativos de exacerbação. Há cerca de 500 mandados de segurança no Judiciário, mas isso nada mais é que a livre disputa pelo direito.Num curso paralelo veio a mandinga do não-vai-pegar. Hoje há em torno de 60 universidades públicas com sistemas de acesso orientados por cotas e nos últimos cinco anos já se diplomaram cerca de 10 mil jovens beneficiados pela iniciativa.Havia outro argumento: sem preparo e sem recursos para se manter, os negros entrariam nas universidades, não conseguiriam acompanhar as aulas, desorganizariam os cursos e acabariam deixando as escolas.Entre 2003 e 2007 a evasão entre os cotistas na Universidade Estadual do Rio de Janeiro foi de 13%. No universo dos não cotistas, esse índice foi de 17%.Quanto ao aproveitamento, na Uerj, os estudantes que entraram pelas cotas em 2003 conseguiram um desempenho pouco superior aos demais. Na Federal da Bahia, em 2005, os cotistas conseguiram rendimento igual ou melhor que os não cotistas em 32 dos 57 cursos. Em 11 dos 18 cursos de maior concorrência, os cotistas desempenharam-se melhor em 61 % das áreas.De todas as mandingas lançadas contra as cotas, a mais cruel foi a que levantou o perigo da discriminação, pelos colegas, contra os cotistas.Caso de pura transferência de preconceito. Não há notícia de tensões nos campus. Mesmo assim, seria ingenuidade acreditar que os negros não receberam olhares atravessados. Tudo bem, mas entraram para as universidades sustentadas pelo dinheiro público.Tanto Michelle Obama quanto Sonia Sotomayor, uma filha de imigrantes portorriquenhos nomeada para a Suprema Corte, lembram até hoje dos olhares atravessados que receberam ao entrar na Universidade de Princeton. Michelle tratou do assunto em seu trabalho de conclusão do curso. Ela não conseguiu a matrícula por conta de cotas, mas pela prática de ações afirmativas, iniciada em 1964. Logo na universidade onde, em 1939, Radcliffe Heermance, seu poderoso diretor de admissões de 1922 a 1950, disse a um estudante negro admitido acidentalmente que aquela escola não era lugar para ele, pois "um estudante de cor será mais feliz num ambiente com outros de sua raça". Na carta em que escreveu isso, o doutor explicou que nem ele nem a universidade eram racistas.


Fonte: Jornal Folha de São Paulo. São Paulo, quarta-feira, 03 de junho de 2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

As cotas e Lei

Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento*

Na semana passada, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, apreciando Representação de Inconstitucionalidade, suspendeu a eficácia da lei que previa políticas de ação afirmativa no acesso às universidades públicas estaduais, reservando vagas para estudantes pobres e pertencentes a grupos desfavorecidos, como ex-alunos de escolas públicas, afrodescendentes e portadores de deficiência. Até o dia de hoje, a decisão ainda não foi publicada, mas as notícias que circulam na imprensa informam que a sua principal justificativa teria sido a violação ao principio da isonomia.

O argumento não é procedente. A isonomia no direito brasileiro não é meramente formal. Nossa ordem jurídica reconhece que existe uma situação de profunda desigualdade social no país, que apresenta um indisfarçável componente racial, e se propõe a combatê-la, com o objetivo de construir uma sociedade mais justa e menos opressiva. As políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior são medidas voltadas a este propósito de promoção da igualdade substancial, que servem também à compensação de injustiças históricas e à garantia do pluralismo nas instituições de ensino o que favorece não apenas os alunos beneficiados, mas também todos os demais, que passam a estudar em um ambiente acadêmico mais diversificado e enriquecedor.

Há quem argumente que, ao invés de promover medidas de discriminação positiva no acesso às universidades, o Estado deveria preocupar-se com a melhoria do ensino básico. Porém, este é um falso dilema. É perfeitamente possível atuar simultaneamente nas duas frentes, lutando por melhorias no ensino fundamental e médio, mas também implementando políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior. É desejável que o poder público invista recursos significativos no ensino superior. Mas estes gastos devem beneficiar também pessoas dos extratos mais vulneráveis da sociedade, e não apenas a elite de sempre.

O Poder Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade das leis, deve, em geral, manter uma postura de deferência diante das escolhas políticas feitas pelo legislador, só as invalidando quando contrariarem visivelmente a Constituição. É que os juízes, ao contrário dos parlamentares, não são eleitos pelo povo. Porém, para proteger os direitos de minorias estigmatizadas, que tendem a ser atropelados no processo político majoritário, justifica-se que os juízes adotem uma postura mais ativista. O que não é aceitável é um ativismo judicial voltado contra minorias vulneráveis.

A decisão do TJ-RJ não encerrou a controvérsia sobre as quotas nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Cabe ainda àquele tribunal julgar o mérito da Representação de Inconstitucionalidade, e, da sua decisão, poderá ser interposto recurso para o STF. Vários ministros do Supremo já se manifestaram, doutrinariamente ou em votos, a favor das políticas de ação afirmativa, inclusive das quotas para afrodescendentes no ensino superior. Por isso, confiamos que o Judiciário brasileiro não sepultará esta importante estratégia de promoção da igualdade material.

*Cláudio Pereira de Souza Neto é conselheiro federal da OAB.

*Daniel Sarmento é procurador regional da República e professor de direito constitucional da Uerj.

Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 1 de junho de 2009.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Liminar que suspendeu lei das cotas só entrará em vigor em 2010



Liminar que suspendeu lei das cotas só entrará em vigor em 2010
Jornal do Brasil Online



RIO - O Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio apreciou nesta segunda, dia 1º, o pedido de reconsideração da liminar que suspendeu as cotas para ingresso nas universidades estaduais fluminenses. Os desembargadores decidiram, por maioria de votos, que a aplicação dos efeitos da liminar concedida na última sessão só passará a vigorar a partir do vestibular de 2010.
Atendendo a pedido do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), os magistrados entenderam que não haveria tempo hábil para que fossem realizadas as alterações no edital do concurso, cujas provas estão marcadas para o dia 26 de junho e já conta com aproximadamente 70 mil inscritos.
"Temos que observar os efeitos sociais, políticos e econômicos de nossas decisões. Não podemos aplicar a eficácia da liminar em um vestibular já em andamento. Isso corresponde a um perigo iminente à segurança jurídica dos estudantes envolvidos no certame", explicou o relator do processo, desembargador Sérgio Cavalieri.
Vencido em seu voto, o desembargador Murta Ribeiro divergiu de seus colegas. Para o magistrado, que defendia a eficácia imediata da liminar, não haveria qualquer impedimento para a manutenção do edital vigente.
"A 1ª fase do concurso, que ocorrerá no mês de junho, é universal. A escolha se o estudante quer ou não disputar uma vaga pelo sistema de cotas só acontecerá em setembro. Não há motivos para modificarmos a eficácia da liminar", esclareceu o desembargador.
A liminar foi concedida no último dia 25, também por maioria de votos. A decisão atendeu um pedido do deputado estadual Flávio Nantes Bolsonaro, que propôs ação direta de inconstitucionalidade contra a lei 5.346, de autoria da Assembléia Legislativa do Estado. O mérito da ação ainda será julgado.
Fonte: Jornal do Brasil Online - 01/06/2009

COTAS, MAGGIE REAPARECE NO GLOBO E TENTA INDUZIR JULGAMENTO




Dois dias depois de reclamar o sumiço da Maggie, eis que ela reaparece em vistosa entrevista nas páginas de O GLOBO, com direito a fotografia, na véspera do julgamento da reconsideração das cotas no órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Deve ser para influenciar o pensamento dos Desembargadores, a não se reposicionarem. O Globo para ser justo, e jornal de verdade, não panfleto, deveria dar uma oportunidade igual de entendimento contrário. Tem muita gente boa apostando nas cotas. Maggie para variar não aponta nem uma solução, a não ser "o tem de melhorar para todo mundo" de sempre. Apesar de admitir o racismo. Ninguém discorda que tem de melhorar para todo mundo. Principalmente os negros. Maggie ainda bate na Fundação Ford, porque "com dinheiro americano, conseguiu advogados, ongs e debates". Quer dizer, quando não tinha advogados, ongs e debate sobre a questão racial, é que estava bom para os negros, caladinhos nos seus lugares de sempre, o fundo da pirâmide social, racial e econômica da sociedade brasileira? Deve ser isso que ela se refere quando diz que tem saudade de um tempo de um aperto de mão, de um abraço. Isso me faz lembrar aquela empregada que ajuda a criar os filhos da madame branca, e que é quase "da família". Ora, cara Maggie, o dinheiro da Fundação Ford é da caridade internacional, e é tão bom quanto qualquer outro. Como dizia Betinho, ajuda se recebe de quem quer que seja. Devia pensar porque se precisa da ajuda externa, que é do mundo inteiro, ao invés de usar fundos brasileiros. Boa parte dos seus colegas de assinatura do Manifesto Contra Cotas, em número de 114, deve à caridade internacional e ajuda do Governo brasileiro as bolsas de Mestrado e Doutorado que fizeram no exterior. De graça. Porque para acabar com o racismo brasileiro, transformando uma categoria de cidadãos de 2a. classe em sujeitos de direitos, não pode? Chega a ser arrepiante sua arrogante posição de que essa parcela da população não pode ter direito a advogados. E seria bom que a imprensa procurasse aquela sentença de procedência da ação de improbidade cujo zumzum anda por aí. Vamos ver se o dinheiro brasileiro está tão cuidado assim. Vou pedir ao pessoal do Movimento Negro para localizar a tal peça.

Fonte: HUMBERTO ADAMI



ENTREVISTA Yvonne Maggie


Fervorosa ativista contra o sistema de cotas raciais para o ingresso nas universidades, a antropóloga Yvonne Maggie, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, comemorou a recente suspensão, pelo Tribunal de Justiça, da lei estadual que estipulava a reserva de vagas em universidades estaduais, como um primeiro passo para a revogação de leis raciais. A seu ver, elas servem apenas para dividir os brasileiros que, no geral, diz, rejeitam o racismo. Segundo ela, o sistema de cotas é fruto de pressão internacional alimentada por milhões de dólares da Fundação Ford: — Essa pressão talvez tivesse caído no vazio se não houvesse dinheiro americano nessa história.

José Meirelles Passos



O GLOBO: O sistema de cotas é apresentado como forma de criar oportunidades iguais para todos. A senhora discorda. Por quê?


YVONNE MAGGIE:
Porque ele faz parte de leis raciais que querem implantar no Brasil. E elas são inconstitucionais. A Constituição Federal proíbe criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. A do Estado do Rio também. Estou defendendo o estatuto jurídico da nação brasileira, com base no fato de que raça não pode ser critério de distribuição de justiça. Raça é uma invenção dos racistas para dominar mais e melhor.

O GLOBO:Que critério usaram para criar tal sistema?
YVONNE:
Surgiu no governo de Fernando Henrique Cardoso, propondo cotas para negros ou pardos, hoje chamados de afrodescendentes, sob o critério estatístico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Mas isso não significa que as pessoas se identifiquem com aquilo. Nós, brasileiros, construímos uma cultura que se envergonha do racismo.

O GLOBO:Mas existe racismo no Brasil, não?
YVONNE:
Eu nunca disse que não há racismo aqui. Mas não somos uma sociedade racista, pois não temos instituições baseadas em lei com critério racial. É interessante ver que o Brasil descrito nas estatísticas foi tomado como verdade absoluta. Há Uma coisa é dizer que o Brasil é um país desigual, com uma distância muito grande entre ricos e pobres. Outra coisa é atribuir isso à raça.


O GLOBO:Quais os motivos para a criação de leis raciais no país?
YVONNE:
Outra alucinação: a de que a forma de combater a desigualdade no Brasil deve ser via leis raciais. Elas propõem dividir o povo brasileiro em brancos e negros. Há quem diga que o povo já está dividido assim. Digo que não. Afinal, 35% dos muito pobres no Brasil se definem como brancos. Qual é o melhor critério?
YVONNE: Em vez de lutar contra o racismo com ações afirmativas, colocando mais dinheiro nas periferias, o governo optou pelas cotas raciais reservando certo número de vagas na escola e, com o estatuto racial, no mercado de trabalho. Então, o país que não se pensava dividido está sendo dividido.


O GLOBO:Seja como for, a ideia das cotas está ganhando adeptos.
YVONNE:
Nem tanto. Pesquisa recente feita no Rio pelo Cidan (Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro), mostrou que 63% das pessoas são contra as cotas raciais.
A maioria do povo brasileiro acha que todos somos iguais. Aprendemos isso na escola.


O GLOBO:O objetivo era beneficiar negros e pardos. Agora no Rio já existem cotas para portadores de deficiência, para filhos de policiais, de bombeiros. A tendência é esse leque aumentar?
YVONNE:
A lógica étnica ou racial não tem fim. Tudo surgiu porque houve pressão internacional com o sentido de combater o racismo. Mas quem domina os organismos internacionais são os países imperialistas, sobretudo Inglaterra e Estados Unidos, que têm uma visão imperialista de mundo dividido. Os EUA são um país dividido. Não pensam como nós. Lá a questão racial é a primeira identidade. Você pergunta “quem é você?”, e dizem: “sou afroamericano”, etc.
Como não vivemos ódio racial no Brasil não sabemos o que é isso. O problema é que ao dividir e criar uma identidade racial, fica impossível voltar atrás.


O GLOBO: O Brasil sucumbiu à pressão internacional?
YVONNE:
A pressão talvez tivesse caído no vazio se não houvesse dinheiro americano nessa história. A Fundação Ford investiu milhões de dólares no Brasil, formando advogados, financiando debates, criando organizações não governamentais (ONGs). Não temos mais movimentos sociais. Quem luta em favor das cotas se transformou em ONG que recebe dinheiro do governo e da Fundação Ford. Juntou-se a fome com a vontade de comer. O governo inventa as ONGs, financia, e depois diz que as cotas são uma demanda do povo.


O GLOBO:Como combater a desigualdade no acesso à universidade?
YVONNE:
O Brasil tem que enfrentar a questão da educação básica de forma madura e consciente, investindo. Precisamos de recursos financeiros e humanos. Melhorar o salário dos professores e sua formação. E mudar a concepção de educação. Sem investimento não construiremos uma sociedade mais igual. Estamos criando uma sociedade mais desigual, escolhendo um punhadinho entre os pobres. Na verdade, a competição pelos recursos não é entre o filho da elite e o filho do pobre: ocorre entre os pobres.


O GLOBO:Como a senhora vê a educação no Brasil?
YVONNE:
A formação de professores e a concepção de educação são precárias. Não se obriga as escolas a ensinar. Obama acaba de fazer uma grande melhoria nos EUA: premia os bons professores. São os que ensinam melhor. E pune os maus. Quem não consegue fazer com que o seu aluno tire nota boa nas provas de avaliação externas, sai ou é reciclado.


O GLOBO:Há luz no fim do túnel?
YVONNE:
Sou otimista. Acho que as leis raciais não vingarão no Brasil. Creio que os congressistas têm mais juízo. E que em vez de lutar pelas cotas, o ministro da Educação deve fazer com que prefeitos e governadores cumpram as metas. Elas são excelentes. A idéia dele é fazer com que os municípios mais pobres recebam mais dinheiro. A opção é investir nas escolas e nos bairros mais pobres.


O GLOBO:É possível conter o lobby das ONGs favoráveis às cotas?
YVONNE:
É muito difícil ir contra grupos que se apresentam como o povo organizado. Temos que lutar pelo povo desorganizado, o povo que anda pela rua, que casa entre si, que joga futebol junto, que bebe cerveja, e não está o tempo todo pensando de que cor você é, de que cor eu sou. Povo é o que nos ensina que é melhor dar a mão do que negar um abraço.


YVONNE MAGGIE: “Raça não pode ser critério de distribuição de justiça, é invenção dos racistas”