sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Relato sobre cerceamento da palavra em lançamento anticotas

Maria das Graças dos Santos*

Estive hoje(13/10) no lançamento do livro "Uma gota de sangue" do Demetrio Magnoli, na Livraria Cultura, em Brasília, um local totalmente elitizado da cidade, de dificil acesso para a maioria de nós. Fiz o convite, mas poucos de nós apareceram. O auditório estava lotado, mais ou menos cem pessoas. E, lógico, uns 90% brancas brasileiras. Quando cheguei com uma amiga, o Demetrio já estava fazendo sua exposição. Fiquei surpresa com a mesa:

-Demetrio Magnoli - geografo, etc, etc, etc.;
-Roberta Kaufman - procuradora do DF;
-George Zarour – antropólogo;
-Paulo Kramer - professor da UnB, com vários processos sobre prática de racismo contra alunos da Universidade;
-Demóstenes - senador DEM/GO;
- Gabeira - deputado PV/RJ

O evento estava sendo filmado pela TV Câmara e transmitido pelo radio Band News FM.
Demetrio fez o mesmo discurso - da tentativa de racialização do Brasil, etc, etc. A procuradora Roberta veio atrás, repetindo o mesmo discurso, e procurando dar uma aula para a platéia, concluindo em tom de euforia que não tinha havido institucionalização do racismo no Brasil. O antropólogo George Zarour veio elogiando o Demetrio, com quem teve contato através do livro "Corpo da Pátria", indo para o grande geógrafo Milton Santos, que não concordava com cotas, conforme ele dizia, e o Darcy Ribeiro também não concordava, etc., etc. Paulo Kramer, que foi identificado como cientista político, é o tal professor da UnB,que tem vários processos de racismo. Afirmou que os racialistas, nós né, tinham todo o espaço na mídia, e que éramos bancados por muito dinheiro. E outras mentiras. Gabeira, que ficou o tempo todo encolhido, com as mãos juntas sobre o rosto, falou de sua juventude, e de que quando tinha 21 anos, para ele a questão de raça era uma ficção. Depois entrou na guerrilha e só veio ter contato com o tema na Europa. Foi contra a posição do Demetrio, que coloca no seu livro que o multiculturalismo divide; ele não acredita nisto, muito pelo contrário. Mas defende a mestiçagem e afirma que até a Luzia era mestiça. E que sempre apoiou o MN, e que assinou o requerimento para levar o Estatuto para discussão no plenário. Foi tipo vazelina, ficou no muro. Demóstenes afirmou que o livro dava prazer de ler. E vai no mesmo caminho do Demetrio, fala do caso jurídico do Supremo sobre se judeu é raça, do texto do Demetrio no Estadão, chegando ao ABSURDO de afirmar que as pesquisas sobre o bom resultado dos cotistas eram manipuladas. A toda fala, a platéia ia ao delírio, batendo palmas.
Até que chegou ao clímax total:
O Demetrio informa que as perguntas enviadas não poderiam ser totalmente respondidas, por falta de tempo - já que havia pressão da livraria - e começou a escolher as perguntas (como era esperado). Neste ponto uma pessoa (negro) pediu para falar e ele, ríspido como sempre, disse que não, e começou a passar as perguntas (que ele não tinha gostado, conforme dizia de forma irônica). A pessoa, de nome Joel, insistiu, e ele disse não. Neste momento vários de nós começamos a gritar, DEBATE, DEBATE, DEBATE. E ele começou a ficar nervoso e fazer com que a platéia a seu favor gritasse contra também. Neste momento se juntou ao Joel outro militante que tinha levado uma faixa com a frase DEBATE DA KU KLUX KLAN BRASILEIRA. Eles foram ficando nervosos, e o Kramer gritou: Vamos todos dar uma vaia - e a platéia dava. E pediu de novo, e a platéia novamente vaiava.
E foi juntando pessoas que davam apoio ao Joel, que insistiam para que se desse voz ao outro lado. Neste momento o Demetrio SURTOU. Afirmando que iria explicar o que estava acontecendo - que eles tinham identificado na internet um grupo do Yahoo, que tinha apenas 59 membros, coordenado por um alto funcionário do Estado brasileiro, Humberto Adami, que coordenava INVASORES para invadir os lançamentos de livros,
e que no Rio de Janeiro tinha sido formada uma milícia fascista. Pedia que fotografassem a todos nós. SURTOU totalmente. Ficava gritando mentiras como se fossem verdades, chamava os seguranças para nos retirar, foi uma confusão. Só que isto trouxe várias pessoas, muitos jovens brancos, para o nosso lado, apoiando.
E aí ele foi retirado para a mesa de autógrafos, com uma fila enorme, já que livraria já ia fechar. Ficamos até o final, conversando com várias pessoas que nos procuraram.
Então mais uma vez ele mostrou que está numa CRUZADA COVARDE de combate aos direitos do povo negro, falando mentiras, mentiras, mentiras, esperando até o momento que elas se tornem verdades. Ele realmente está fazendo o trabalho direitinho. Também está sendo bem pago, mas trabalha com prazer. Das pessoas que estavam lá só eu (Que a toda fala dele eu repetia VOCÊ MENTE, VOCÊ ESTÁ MENTINDO) participo do grupo discriminação racial. Ele e seu pessoal estão realmente nos monitorando. Já sabíamos disto. Eu acho que o Adami deveria processá-lo por calúnias irresponsáveis.

Ativista do Movimento Negro/DF*

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Somos, sim, racistas


Somos, sim, racistas
por Phydia de Athayde


As universidades têm adotado critérios distintos de políticas afirmativas e contemplado outros grupos, como índios. Mas só o benefício a negros incomoda
Em 2000, entre os 50 calouros de Direito na Universidade Federal de Sergipe, havia quatro negros, dos quais apenas dois se formariam. Ilzver de Matos Oliveira era um deles. Os quatro anos de curso não foram suficientes para que uma professora aprendesse a distinguir Ilzver de outro colega. “Ela não conseguia perceber que tínhamos um rosto peculiar e próprio, além da pele negra comum. Só depois percebi o quanto ela destruía a minha identidade e autoestima”, diz o hoje professor substituto na mesma universidade. “A discriminação no Brasil quase nunca é explícita. Somos culturalmente trabalhados para evitar conflitos.” A trajetória de Ilzver, 29 anos, teria sido como a de muitos garotos nascidos em famílias pobres. Por sorte, um tio o apadrinhou e custeou dois anos de escola particular quando ele tinha 8 anos. Aos 18, prestou vestibular para Medicina na Universidade Federal de Sergipe. Não passou. Aos 19, novo fracasso. Na terceira tentativa, optou por Direito e entrou em 18º lugar. “A primeira ação afirmativa da minha vida foi a ajuda desse tio”, diz. Formado, ele concorreria a uma bolsa de pós-graduação da Fundação Ford. Oliveira cumpria os pré-requisitos necessários e, aprovado, tornou-se mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia e em Sociologia (pela Universidade de Coimbra). Além da função na universidade federal, hoje leciona na Faculdade Pio Décimo, também em Aracaju, e milita pelos direitos dos negros em Sergipe. Em 2010, pela primeira vez a Universidade Federal de Sergipe reservará metade de suas vagas para alunos vindos do sistema público de ensino. Destas, 70% serão destinadas aos que se declararem negros, pardos ou indígenas. Além disso, em cada curso haverá uma vaga para portadores de necessidades especiais. O programa de ação afirmativa foi aprovado pelo Conselho da universidade e ficará em vigor durante dez anos. Assim tem sido até hoje nas instituições públicas de ensino superior, onde os conselhos de ensino discutem os termos e aprovam o sistema de cotas – ou de bonificação – para grupos desfavorecidos. Facilitar o acesso a quem tem menos condições é o cerne das ações afirmativas. Nos últimos 14 meses, o total de universidades que adotam algum tipo de ação afirmativa saltou de 69 para 93. Dentre elas, as que utilizavam algum recorte racial passaram de 55 para 67. Por recorte racial entenda-se a ação afirmativa dirigida não apenas a negros, mas também a indígenas (estranha e providencialmente suprimidos do debate “racial” das cotas). Este levantamento, atualizado até agosto de 2009, é resultado do trabalho de grupos da UERJ, da PUC-Rio, da Universidade de Brasília (UnB) e do CNPq, que monitoram as ações afirmativas no País. João Feres Junior, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, ligado ao Iuperj, detalhou ainda mais quais são e como se dividem os critérios das ações afirmativas nas universidades brasileiras (quadro à página 36). “Alguns programas têm por objetivo a promoção de somente um grupo de pessoas desfavorecidas, outros beneficiam dois, três, quatro ou até cinco categorias diferentes. E as categorias são também de natureza heterogênea: etnia, raça ou cor da pele, origem regional, renda e educação pública”, comenta. Em meio a tantos critérios, moldados pelas características próprias dos locais onde estão essas universidades, um único aspecto tem sido capaz de, sozinho, dividir a comunidade acadêmica, gerar discursos inflamados, acirrar ideologias e ser questionado na Justiça: a identificação dos negros entre os beneficiados. Este é o ponto central da ação movida pelo DEM, o ex-PFL. O DEM quer que a Justiça proíba a matrícula dos alunos que entraram usando as cotas na UnB (a instituição usa apenas o critério etnorracial) e, mais que isso, declarar inconstitucionais quaisquer iniciativas que utilizem o critério de raça negra para conceder qualquer tipo de benefício. A advogada Roberta Kaufmann, autora da ação, disse ter procurado diversos partidos políticos até encontrar eco a sua causa. Pupila de Gilmar Mendes, foi orientada pelo próprio presidente do Supremo Tribunal Federal no mestrado em que questiona a necessidade de ações afirmativas no Brasil. Conclui que é melhor ficar tudo como está. Pelo menos, no que diz respeito aos negros. Pobres, argumenta, ainda poderiam receber algum auxílio. O presidente do STF redigiu a apresentação do livro de Roberta, que trabalha no Instituto de Direito Público (IDP), do qual Mendes é sócio. Apesar de ter negado a suspensão das matrículas dos cotistas, Mendes elogiou o trabalho da pupila e, em seu despacho, indicou concordar com a tese do DEM. O próximo passo será a discussão, em plenário, do mérito da ação, que dificilmente ocorrerá neste ano. “Há um descompasso entre a prática das ações afirmativas e o estardalhaço quanto a elas na mídia e em algumas instâncias da Justiça”, avalia Fúlvia Rosemberg, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas e responsável pelo programa de bolsas de pós-graduação da Fundação Ford. “O Brasil oferece acesso preferencial e benefícios a muitos grupos, mas esperneia-se nas universidades públicas porque são um reduto das elites.” No debate contra ou a favor das cotas para negros, diz a pesquisadora, não se discute o racismo de hostilidade e ofensas, mas um processo sutil de discriminação baseada em desigualdades com base étnica e social. Um padrão de segregação racial informal, mediado pelo nível socioeconômico. Entre os 25 mil alunos da UnB, há 3.225 cotistas. No vestibular, 20% das vagas são destinadas a negros, independentemente de terem vindo de escolas públicas ou privadas, que concorrem entre si. Como em todas as demais universidades, a adesão às cotas é voluntária. “Em alguns cursos, a nota de corte dos cotistas é mais alta que a dos demais e a maioria é de baixa renda. Para a UnB, as cotas são um ato político”, defende o professor de antropologia José Jorge de Carvalho, que ajudou a implantar as cotas na universidade. Em termos de desempenho acadêmico, não há grande diferença no rendimento anual dos alunos da UnB em geral. Na Universidade Federal da Bahia, onde as cotas foram criadas em 2005, os alunos negros já representam 75% do total. A Unicamp tem uma experiência diferente. Não existem cotas e, sim, bônus na pontuação do vestibular. Numa prova que vale 500 pontos, alunos oriundos da escola pública ganham 30 e se forem negros, mais 10 pontos. A ideia surgiu da observação do desempenho desses alunos na vida acadêmica. “Os pontos de bônus apenas corrigem as distorções do vestibular. Tornam mais competitivos os alunos que, lá na frente, terão melhor desempenho”, explica Leandro Tessler, assessor da reitoria. Em mais da metade dos cursos, os alunos que receberam os bônus têm médias melhores. “É importante unir inclusão social a desempenho acadêmico. Tudo o que eu não quero é uma lei me obrigando a implantar cotas, pois elas não consideram as demandas dos cursos.” Como a experiências são recentes, ainda é cedo para dizer qual será o futuro das ações afirmativas no País. Nos Estados Unidos, duraram cerca de 50 anos. Até hoje é legal o uso da etnia como critério para ações afirmativas, mas desde 1976 não há mais cotas nas universidades, ainda que a raça possa ser considerada na seleção. Na Califórnia, desde 2003 os bônus são analisados caso a caso. “As cotas têm o fator positivo de dar um tratamento de choque ao forçar a sociedade a pensar em um tema real, a discriminação e o racismo. Mas não deixam de ser uma forma de discriminação, mesmo que positiva”, ressalva o educador e psicólogo da USP, Yves de La Taille. “É sempre delicado separar as pessoas pelo que for, fere a ideia de igualdade, por isso as cotas poderão gerar inclusão ou reforçar a discriminação.” Para além dos corredores das universidades, há outra mudança em curso no Brasil no que diz respeito à raça e cor. É o que defende o pesquisador do Ipea e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade da UFRJ, Sergei Soares. Ele analisou recortes de população da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE, e notou que, entre 1996 e 2001, começou um processo de mudança em como as pessoas se veem e como se declaram para os pesquisadores (quadro à página 35). “Elas passam a ter menos vergonha de dizer que são negras. Isso antecede as cotas e continua até hoje.” Soares argumenta que o impacto numérico das cotas é muito pouco relevante na população brasileira, comparado ao do ProUni, o programa federal que dá isenção fiscal a faculdades privadas que oferecerem bolsas a estudantes de baixa renda inscritos no programa. Para o ministro da Secretaria Especial de Promoção de Políticas da Igualdade Racial, Edson Santos, os principais temores daqueles que se diziam contras as cotas nas universidades caíram por terra. “Não caiu o nível da produção acadêmica, não gerou confrontos nem conflitos de raça, e não há desvantagem para os não-negros, pois as cotas são sociais, com um recorte racial.” Antes de chegar ao STF, a Justiça dos Estados onde há cotas tem lidado com questionamentos. Muitas vezes, alunos alegam ter sido injustiçados ao perder a vaga para um cotista. Um levantamento publicado no Estado de S.Paulo mostrou que na maioria dos casos o Judiciário tende a rejeitar as alegações e a considerar o sistema constitucional. Exceções têm ocorrido no Rio Grande do Sul, onde o critério de renda tem dado vitórias aos opositores da ação afirmativa.
Fonte: Revista Carta na Escola

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Nova África - Estréia na TV Brasil


Internacionalmente, a imagem da África oscila entre estereótipos como "o continente perdido" e metáforas como o "coração das trevas" de que fala Joseph Conrad - uma região alijada do chamado desenvolvimento capitalista, devastada pela peste, miséria e demais efeitos dos séculos de exploração colonial, habitada por populações cuja sobrevivência dependeria de campanhas humanitárias.

Para o Brasil, apesar de toda a imensa herança que, como elemento formador - e a partir do legado cruel da escravidão -, nos deixou, ela continua sendo um grande enigma. É precisamente esse enigma que a série Nova África, em exibição a partir do próximo dia 25, todas as sextas-feiras, às 22hs, na TV Brasil, tenta desvelar.

Dirigida pelo jornalista e blogueiro Luiz Carlos Azenha e por Henry Daniel Ajl, a série se propõe a empreender uma "jornada de descoberta", inédita na TV brasileira, pelo continente africano, revelando-o em sua diversidade, para além dos tais estereótipos imperialistas, com uma atenção especial a seus povos e culturas e à capilaridade de suas relações com o Brasil.
Primeiro programa enfoca Moçambique
Essa jornada começa em pleno mar, que a um tempo une e separa Brasil e África e ocupa um lugar central no imaginário artístico de boa parte da produção desses dois gigantes periféricos tão perto e tão longe entre si. Um barco navega no Oceano índico, que separa o continente africano da ilha de Moçambique, tema do primeiro programa da série de 26 episódios produzida pela Baboon Filmes, que venceu edital público da TV Brasil.

A estratégia narrativa desenhada pelo roteiro permite, a um tempo, retratar a África a partir da perspectiva dos africanos - evitando abordagens condicionadas por um vício imperialista que, como aponta o escritor moçambicano Mia Couto, tem produzido uma imagem falsa do continente - e garimpar os veios de ligação da cultura africana com a brasileira. A primeira operação é propiciada não apenas por entrevistas que evitam as fontes oficiais e interagem da forma mais espontânea possível com o interlocutor, mas por um olhar atento, cúmplice (imerso, e não de fora) ao modo de vida nos países percorridos.

Já a ligação do continente com o Brasil é uma teia tecida de forma sutil e intermitente, num primeiro nível através da repórter Aline Midlej, que já no episódio inicial, em solo africano, declara: "Como muitos brasileiros, tenho dúvidas sobre minhas raízes. Sei que alguns de meus antepassados familiares saíram daqui, e é tudo. É como se minha história familiar se perdesse na imensidão do continente". E, enquanto imagens em sucessão mostram cenas de um cotidiano que bem poderíamos reconhecer como o de muitas pessoas no Brasil - mas que não deixam de ter um quê especial - a ligação com o continente deixa de se dar a partir da subjetividade da repórter e se anuncia coletiva: "mas qualquer um é capaz de reconhecer esse ritmo, esses sorrisos, esse jeito de ser".

Num segundo e mais explícito nível, a ligação África-Brasil é objetivamente tematizada pela abordagem narrativa. No primeiro episódio, por exemplo, isso se dá tanto através de uma reconstituição "subjetiva" da chegada à Ilha de Moçambique do navio Nossa Senhora da Conceição, que em 1792 levou sete dos "inconfidentes" mineiros - cujas penas capitais foram comutadas por degredo em colônias portuguesas. Entre eles, Tomás Antônio Gonzaga, o autor de Marília de Dirceu, que prosperaria em terras africanas. Por vezes, o dualismo África-Brasil é superado pela evidência de uma cultura pan-portuguesa, como na ligação entre Camões (que morou em Moçambique, numa casa semi-arruinada visitada pelo documentário) e a poética luso-brasileira. Mas o momento climático do primeiro episódio se dá através do relato emocionado de uma moçambicana de sua relação com as novelas brasileiras.

Assim, evidencia-se que mais do que o continente em si, são as mulheres e os homens africanos e a cultura - na acepção ampla do termo - que produzem o centro do interesse de Nova África. O documentário, desse modo, não apenas possibilita o contato com uma realidade sócio-cultural da qual a grande mídia nos mantém afastados, mas o faz em grande estilo: com imagens belas mas jamais folclóricas, conteúdo rico em sua diversidade e curiosidade antropológica. Como o demonstra o relato de Conceição Oliveira, que prestou consultora de História à produção:

"No segundo programa, no interior de Moçambique, encontramos a professora Diamantina embaixo de um cajueiro. Era sábado, dia de entrega de material. A cena é fabulosa, passávamos pela estrada e vimos uma roda imensa de crianças ao redor do cajueiro, protegidas do sol pela copa da árvore. Ela dá aula sozinha para 360 alunos em condições distantes da ideal - e não precisa dar um grito para ter atenção. Foi uma lição de vida para todos... Você vai se emocionar, as crianças cantaram lindamente para nós, chorei. Aliás, as crianças de Moçambique me emocionaram sempre".
Excelência técnica e imersão emocional
A direção de fotografia da série (Markus Bruno) não pode ser considerada menos do que primorosa: gravações tecnicamente bem-resolvidas, mas feitas no calor da hora, no melhor estilo jornalístico, combinam-se a tomadas que evidenciam um cuidado extremo não apenas com angulações, movimentos de câmera e composições de quadro, mas em trabalhar a luz - no mais das vezes intensa e natural - de modo a realçar o universo multicolorido do continente sem folclorizá-lo.

Tais imagens são trabalhadas por uma montagem que é ágil sem jamais ser neurótica e "videoclipada", como ora em voga: respira, tem ritmo; não se furta a compor mosaicos com imagens em profusão, mas respeita a relação com o objeto retratado, não hesitando em se deter em determinada tomada por um tempo mais longo, se conveniente. E, embora a ficha técnica não elenque sound design ou montagem de som entre seus quesitos, o som é tratado com especial atenção, seja em relação à imagem, como elemento de condução da narrativa ou exercendo a função de realçar a riqueza musical da África. Trata-se de um aspecto técnico tratado com um apuro raro de se observar em produções jornalístico/documentais da TV brasileira.

Desnecessário dizer que as manifestações sonoras retratadas são, literalmente, um show à parte - valorizado, no caso, pela trilha sonora e pela mixagem de Rafael Gallo. É na música e na dança, mais do que em qualquer outra arte, que a excepcional aptidão artística dos africanos se evidencializa, como manifestação de uma alegria que não sem frequência contrasta com a escassez material em volta:

"Voltei com a sensação de que se há um continente onde seus povos são sinônimo de resistência é o africano. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida como pessoa, estudiosa do assunto, como mulher - afirma Conceição, que promete postar em seu blog algumas histórias sobre a empreitada e "pôr no ar algumas fotos dos sorrisos mais lindos que vi na vida" (o primeiro texto já esta lá, confira).

Um tema tão raras vezes visto nas telas brasileiras, tratado com tamanha sensibilidade e alto grau de excelência técnica, prova a que veio uma TV pública que foi injusta e impiedosamente combatida por certos setores da mídia e pelas penas de aluguel a seu serviço. Pois, caro(a) leitor(a), não se deixe iludir: nenhum canal comercial ousaria produzir uma série com tamanha qualidade, que se estendesse por tanto tempo e sobre um assunto sem apelo comercial para os grandes anunciantes - porém, como a própria série demonstra, essencial para uma melhor compreensão não apenas da África e dos africanos, mas, através dela, do que somos nós: é a TV pública brasileira dizendo a que veio.

Municípios discutem Plano Nacional de Educação para as Relações Étnicorraciais


Relatos de experiências, discussão sobre as responsabilidades de cada segmento na implementação da Lei Federal nº. 10.639/03, que determina o estudo da cultura dos afrodescendentes no currículo das escolas, a apresentação do Plano Nacional de Educação para as Relações Étnicorraciais. Estes foram os objetivos do seminário realizado em Maceió.
O evento reuniu participantes de mais de 40 municípios alagoanos, numa iniciativa do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnicorracial, que é coordenado pela Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (SEE), através da Gerência de Educação Étnico-Racial e Gênero.
Segundo o palestrante e professor mestre da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), Clébio Araújo, o foco principal da palestra ministrada por ele foi o trabalho, a identidade nacional e o racismo. "Fizemos uma análise do processo de formação do povo e da nação brasileira. Procuramos demonstrar quais são os lugares reservados às minorias étnicas. Além disso, procuramos desvendar o mito da democracia racial através das contradições desse mito e as desigualdades que perpassam os diferentes dentro do que se chama democracia racial", informou.
Já o secretário de Educação de Joaquim Gomes, Mário José da Silva, destacou que este seminário foi de fundamental importância, uma vez que o negro ficou durante anos relegado ao patamar do esquecimento. "No momento em que se cria uma lei para tentar rever esse esquecimento é preciso comemorar. A partir de agora, o município de Joaquim Gomes irá tratar com mais cuidado e atenção a temática étnicorracial", assegurou.
Por fim, o palestrante Élcio Verçosa destacou que, felizmente, por pressão dos movimentos sociais, principalmente, o Movimento Negro, a temática étnicorracial está consubstanciada em lei. "O Brasil é um país mestiço. Isso não pode ser escondido e nem negligenciado pela escola. O povo negro deu uma contribuição enorme para que o país atingisse o patamar de desenvolvimento que possui. Povos e culturas precisam se articular e se respeitar", complementou o educador.


Fonte: Alemtemporeal

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A Câmara dos Deputados aprovou o Estatuto da Igualdade Racial


BRASÍLIA - A Câmara aprovou nesta quarta-feira o Estatuto da Igualdade Racial, que vem sendo discutido no Congresso desde 2003. Por acordo entre governo e oposição, foram retirados os pontos mais polêmicos do texto original como a criação de cotas para negros nas universidades federais, um percentual que obriga atores e figurantes afrodescentes em programas de TV e a titulação de terras quilombolas.
O deputado Daniel Feliciano (PDT-BA) acusou os colegas de aprovarem o estatuto desidratado, com poucos efeitos práticos para a população negra.
" Esse relatório suprime a essência de muitas coisas que já haviam sido conquistadas em anos de luta "
O acordo manteve a criação de cota para candidatos negros nas eleições, mas reduziu esse percentual de 30% para 10%. Já as cotas na TV foram eliminadas, e os artigos que instituíam a reserva de vagas no ensino superior foram substituídos por um texto genérico, que não fixa prazos ou percentuais. O relatório manteve a promessa, a ser regulamentada, de incentivos fiscais para empresas com 20% de trabalhadores negros.
O presidente da Comissão especial, deputado Carlos Santana (PT-RJ) minimizou as críticas e classificou a aprovação de vitória histórica.
- Ao aprovar o estatuto estamos reconhecendo que há discriminação racial no Brasil. Nós não recuamos.
O deputado Onix Lorenzoni (DEM-RS) elogiou o texto aprovado.
- O DEM lutou para que o estatuto fosse mestiço como é o Brasil. Não há espaço para racionalização ou para uma nação bicolor.
O ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, disse que a Câmara aprovou o texto que era possível.
- O estatuto foi possível diante da correlação de forças do Congresso. O maior avanço é que ele não vai gerar conflitos porque os partidos estão unidos em torno do mesmo texto - disse o ministro.
Com a aprovação do relatório da Comissão Especial, o projeto deve seguir diretamente para o Senado. A intenção é que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancione o estatuto no dia da Consciência Negra, dia 20 de novembro.
O texto foi aprovado em clima de festa, com batucada promovida por militantes com roupas e turbantes afro. Os deputados esqueceram o protocolo e votaram de pé. Depois, cantaram de mãos dadas o samba "Sorriso negro", gravado por dona Ivone Lara.
Tramita na CCJ do Senado projeto que estabelece sistema de cotas nas universidades federais. O sistema prevê destinar 50% das vagas a alunos das escolas públicas com subcota racial. Essa subcota segue os critérios do IBGE. Ou seja, depende do número de negros na população do estado. Onde há 70% de negros, 70% das vagas destinadas para estudantes da rede pública devem ir para negros.
Fonte: O Globo

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Negros podem dirigir carros de luxo?







Negros podem dirigir carros de luxo?


Em Debate
Fonte: Global Voices Portugues -

Este é um artigo que foi traduzido para o inglês e colocado no blog Adventures of a Gringa (as aventuras de uma Gringa) e que pode ser lido no original neste link

Nas últimas semanas de agosto, a discussão sobre o racismo e preconceito na sociedade brasileira foi trazida à tona por um evento que causou um sentimento de revolta por todo o país. Januário Alves de Santana, um homem negro de 39 anos foi espancado pelos seguranças de uma das maiores lojas de departamento no Brasil enquanto esperava por sua esposa e seus filhos no estacionamento. Ele foi acusado de tentar roubar seu próprio carro. Os seguranças alegaram que, sendo Januário um homem negro, ele não teria condições de possuir um Ford EcoSport.
Rachel Glickhouse, em Adventures of a Gringa [Aventuras de uma Gringa, en], descreve precisamente o decorrer dos eventos do dia 07 de agosto como contado por Januário. Ela diz:
"Standing outside of the car, he noticed more suspicious men approaching him. Then one-who was actually a security guard-approached him and took out a gun. He attacked Januário without identifying himself, and Januário didn't know if it was a mugger or a cop. While they struggled, passersby called for help, and Januário thought he was saved. Several security guards from Carrefour approached, and he explained that it was a misunderstanding-he was not in fact trying to steal the motorcycle nearby. The security guards grabbed him and took him inside to a small room to "work out" what had happened. "So," they said, "you stole an EcoSport and were trying to take a motorcycle, too?The five security guards then proceeded to beat Januário senseless, in what the original report called "a torture session," hitting, punching, headbutting, and pistol-whipping him, knocking out his teeth and leaving him bleeding heavily. Januário says he tried to explain that the car was his, and that his baby daughter was inside while his family was shopping. His attackers ignored him. "Shut up, n*****. If you don't shut up, I'll break every bone in your body," one of them yelled. They laughed when he insisted it was his car. The beating lasted around twenty minutes, before the police arrived".




"Esperando fora do carro, ele avistou mais homens suspeitos se aproximando. Então um dos homens - que na verdade eram seguranças - aproximaram-se dele e tiraram uma arma. Ele atacou Januário sem se identificar, e Januário não sabia se o tal homem era um ladrão ou um policial. Enquanto brigavam, pessoas que passavam por ali pediram ajuda, e Januário achou que ele estava salvo. Vários seguranças do Carrefour se aproximaram, e ele explicou o mal-entendido - que ele não tentou roubar a motocicleta próxima a ele. Os seguranças o agarraram e o levaram a uma pequena sala para "resolver" o que tinha acontecido. "Então", eles disseram, "você roubou um EcoSport e tentou roubar uma motocicleta também?"Os cinco seguranças então continuaram a golpear o Januário sem sentido, o que o relatório original chamou de "sessão e tortura," batendo, socando, cabeceando, e dando coronhadas nele, acertando seus dentes e o deixando sangrando bastante. Januário disse que tentou explicar que o carro era seu, e que sua filha estava dentro do carro enquanto sua família fazia as compras. Os agressores o ignoraram. "Cale a boca, pr***. Se focê não calar a boca, vou quebrar todos os ossos do seu corpo," um deles disse. Eles riram quando Januário insistiu que o carro era dele. O espancamento durou em torno de 20 minutos, antes da polícia chegar."

E continua a explicar, ao dizer que "a tortura ainda não tinha acabado", até mesmo após a chegada da polícia:




"One of the military policemen, by the name of Pina, didn't buy Januário's "story." "You look like you've been in jail a couple of times. Come on, fess up, it's ok," the police officer said. Another police officer didn't believe he was a security guard, and started quizzing him about security rules. Finally, the police went to Januário's car and confirmed it did in fact belong to him and his wife. His family was there, shocked to see him bleeding with cracked teeth, and his daughter was still asleep in the car."




"Um dos oficiais de polícia, conhecido como Pina, não acreditou na "história" do Januário. "Você deve ter duas passagens na cadeia. Vamos lá, confessa, ta?" o oficial disse. Um outro policial não acreditou que Januário era de fato segurança, e começou a questioná-lo sobre regras e segurança. Finalmente, os policiais foram até o carro de Januário e conformaram que, de fato, o carro pertence a ele e sua esposa. Sua família estava lá, chocada ao vê-lo sangrando com os dendes quebrados, e sua filha continuava dormindo no carro."


A polícia deixou Januário sem oferecer ajuda ou chamar uma ambulância. Ao ser levado ao hospital por sua família, Januário foi tratado por choques e lacerações. Desde então, ele já perdeu 8 kg, sofre de insônia, não pôde voltar ao trabalho, e, na última quinta-feira, foi operado para corrigir uma fratura óssea na face. A família registrou queixa com a polícia da região, e de acordo com a versão policial, seu espancamento foi consequência de um "tumulto" e "briga entre alguns clientes". O Carrefour emitiu uma nota lamentando o mal-acontecido e dizendo que vai cooperar com as investigações. Januário planeja processar ambos, tanto o supermercado quando o Estado de São Paulo, e vender o carro que ainda paga as prestações de R$789, divididas em 72 vezes.
Na medida em que o caso obteve grande repercussão por todo o país, a maioria das pessoas simpatizou com Januário. O blog Censurado aponta muitos outros casos de preconceito contra negros cometidos pela segurança dessa mesma loja de departamentos, e ironicamente pergunta aos seus leitores:

Queria um conselho dos meus leitores. Se um dia eu precisar comprar, sei lá, um shampoo no Carrefour, devo levar um amigo branco junto comigo?
Maria Frô replicou a notícia original do AfroPress em seu blog, adicionando um título diferente à notícia que parafraseia o livro “Não Somos Racistas” do jornalista Ali Kamel. O título do post é:
É, segundo Kamel, não somos racistas. Só quase assassinos.
O blog Pão e Rosas repudiou veementemente o caso contestando o mito da democracia racial brasileira:
Enquanto os discursos de intelectuais, políticos burgueses e dos meios de comunicação afirmam veemente “Não somos racistas”, vem à tona um caso escandaloso de como o racismo se reproduz nas formas mais violentas e repugnantes. Todo a falácia da democracia racial cai por terra frente a casos como este – e poderíamos listar tantos outros que ganharam repercussão e depois foram esquecidos, na maioria das vezes marcados pela impunidade.
Juarez Silva Jr., do Blog do Juarez, segue essa linha de pensamento e também contesta o mito de que o Brasil das misturas culturais seja uma democracia racial pacífica:
é verdade… , quando o negro sai do seu “esteriótipo e ‘lugar’ social ” ele “paga o preço”, afinal se ele não tivesse um carro bacana, talvez nada disso tivesse acontecido não é mesmo ???? , cansado de ter problemas por sua situação social não condizer com o “esperado” pela sociedade, a vítima já pensa em vender o “carro problemático” […]Deus me livre de por as rodas do meu vistoso Adventure no estacionamento dessa rede…, BOICOTE JÁ.




No Geledés Instituto da Mulher Negra, muitas pessoas lamentaram essa notícia e encheram a caixa de comentários com ideias de revolta. Por exemplo, Ayraon diz:
Só no Brasil se acha que o racismo é velado. Velado nada! Só não vê quem não quer, ou seja, o povo brasileiro iludido por uma visão deturpada de si mesmo. “Somos mestiços!” diz um, “Não existe preto ou branco” diz outro na hora que esse preto inexistente diz sofrer racismo. Lá fora, quem conhece o Brasil, não consegue entender como esse país pode, por tanto tempo, esconder seu racismo doente. Aqui dentro, vivemos na insanidade coletiva: brancos acham que racismo não existe, que tá na cabeça dos pretos (que, segundo alguns pretos e brancos, não existem), negros dizem que o racismo brasileiro é “velado”; e muitos aceitam essa situação (alguns até dizendo nunca terem sofrido racismo, mesmo sendo alvo dele todo o dia). A história do bahiano me deixa triste , por que ela v ai se repetir, e se repetir, e se repetir sem que façamos nada. Ou iremos fazer algo?
Respondendo à pergunta acima, as mobilizações já começaram. Houve uma manifestação em 22 de agosto e, de acordo com o Instituto Geledés, um protesto maior contra o supermercado acontecerá em 5 de setembro.
A questão racial é muito complexa para países que já foram colônias de Estados desenvolvidos e assombrados pela escravidão; muito preconceito permanece em suas sociedades contemporâneas. O Brasil é um lugar marcado pela escravidão violenta de negros africanos que durou mais de 300 anos e que foi, de certo modo, um braço do quadro econômico durante a era colonial. O racismo sempre esteve ligado à relações sociais no país. Os negros hoje herdaram este estigma social e sofrem racismo em vários aspectos do cotidiano. Mas isso é assunto para ser trabalhado mais detalhadamente em outro post.
Matéria original

terça-feira, 25 de agosto de 2009

O permanente holocausto negro


por: Ricardo Gondim

A formação cultural brasileira tem graves deformações. Desde seus primórdios matriciais, tantos índios como negros pagaram o mais caro preço para que nascesse esta nação que fala português, come farinha de mandioca e tem compulsão por tomar banho.Leio Darcy Ribeiro e quedo-me espantado pelas injustiças toleradas contra Tamoios, Tupinambás, Tupiniquins, Tabajaras e tantas outras etnias que sofreram horrores em nome da “civilização”. Pergunto-me porque a religião não percebia tantas injustiças praticadas em nome do progresso. Por que não houve mais profetas defendendo a justiça com o dedo em riste?
Os negros arcaram com um ônus incalculável. Em “O Povo Brasileiro” – A Formação e o sentido do Brasil” (Cia das Letras) – Darcy Ribeiro descreve os horrores sofridos pelos negros. Que foram esses negros? Nina Rodrigues ressalta que os escravos brasileiros vinham de três grandes grupos: Os da cultura sudanesa, principalmente os Yorubas ou Nagôs; os Peuhuls, vindos do norte da Nigéria, também chamados de Malé; e os negros do grupo congo-angolês, principalmente os Bantus, seqüestrados da região onde hoje fica Angola.Minha leitura de Darcy Ribeiro não serve para suscitar ódios ou ressentimentos históricos. Percebo, porém, que séculos depois, seus descendentes ainda vivem, em larga escala, sub-empregados, amontoados em favelas; continuam a contemplar seus filhos morrendo prematuramente.
No Brasil, as elites insistem na defesa de seus bens. Para elas, o capital vale infinitamente mais que a vida da patuléia. Gente pode ser gasta, contanto que se preservem as “conquistas” patrimoniais. Somos um povo que nasceu insensível aos horrores da escravidão; e fomos um dos últimos a erradicá-la do globo. Nos dias atuais, quem defende o pobre, partilha da mesma sorte dos abolicionistas; sofre um ostracismo semelhante ao de Castro Alves com seu “O navio negreiro”. Ele era considerado um desestabilizador da economia. O Brasil não podia sair abruptamente dos horrores do sistema que considerava seres humanos meras bestas, e por incrível que pareça, séculos depois, ainda não pode.
O relato de Darcy Ribeiro é preciso e chocante:
“ Conscritos nos guetos de escravidão é que os negros brasileiros participam e fazem o Brasil participar da civilização de seu tempo. Não nas formas que a chamada civilização ocidental assume nos núcleos cêntricos, mas como as deformações de uma cultura espúria, que servia a uma sociedade subalterna. Por mais que se forçasse um modelo ideal de europeidade, jamais se alcançou, nem mesmo se aproximou dele, porque pela natureza das coisas, ele é inaplicável para feitorias ultramarinas destinadas a produzir gêneros exóticos de exportação e de valores pecuniários aqui auridos....
A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compreensão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação do seus interesses.
O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito freqüente, ou da fuga, mais freqüente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia ser até alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil.
Uma morte prematura numa tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a vida do escravo trazido de tão longe para cair no inferno da existência mais penosa. Sentido que é violentado, sabendo que é explorado, ele resiste como lhe é possível. ‘Deixam de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados’, diz um observador alemão, ‘e se desprezássemos a primeira iniqüidade a que os sujeitou, isto é, sua introdução e submissão forçada, devíamos de considerar em grande parte os castigos que lhes impõem os seus senhores’. Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à condição humana que uma vez instituído só se mantém através de uma vigilância perpétua e da vigilância atroz da punição preventiva.
Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente, bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, do lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.
Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio – inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar; na forma de mutilação de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sub trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinqüenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.
Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ele é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar, e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária”.
Você e eu somos algozes e vítimas. Que Deus tenha misericórdia de nós e que possamos, a partir de nossos escombros históricos, construir um Brasil mais justo para com o negro e com todos seus descendentes.